No meio daquele vale vive um povo que parece viver o entorpecente
culto ao barulho. Barulho que se expressa nas suas vozes gritantes, nos
ruidosos automóveis e nos aparelhos de som que vomitam todo tipo de coisa que,
nos mais sensíveis, causam náuseas.
Dizem que o culto deriva da apatia constante desse povo ante as
letras. Letras em excesso causam efeitos diversos nesses pessoas, alguns reagem
com raiva em face de exposição tão perigosa, mas há também os que partem para a
ironia, a penúltima fuga do debatedor, outros apenas fogem. Cada um a seu jeito
e, por vezes, misturando mais de uma forma, entre as citadas, em diferentes
doses, o que multiplica em outras tantas formas as reações. O fato é que a
letra, assim escrita, lhes turva a mente e embrulha os estômagos. Dizem alguns
que, inclusive, dificulta a organização do pensamento.
Diria eu que excessos de palavra, talvez, lhes obrigue ao
pensamento, à reflexão, e parece que mentes não habituadas a esse tipo de
exercício fogem disso como foge o falso cristão de toda conduta que não seja
montada na hipocrisia. Dizem que somos diferentes dos animais pelo fato de
possuirmos a capacidade do pensamento, penso que somos diferentes pelo fato de
possuirmos essa capacidade e, mesmo assim, nos negarmos a pensar.
Talvez fosse um mundo melhor se os gatos, em vez dos humanos,
fossem abençoados com a capacidade de pensar. Sua discrição talvez evoluísse
com eles e teriam assim um mundo ao menos mais discreto, mais silencioso, mais
elegante até.
Mas fomos nós, essa espécie estranha de macacos, os escolhidos. Olho
os macacos em geral e os acho tão engraçados, neste momento não nos vejo como
eles. Nossa graça hoje em dia baseia-se na humilhação do outro, a graça do
macaco encontra-se nele mesmo, na personificação cárnea da sua existência.
Menos talvez nos gorilas e babuínos, pois são imponentes.
Enfim, fomos os premiados, ou sentenciados, pois usamos nossa
capacidade de pensar, inclusive, para criar um sistema de benefícios e punições
que nos fazem, em grande parte das vezes, carregar uma vida pesada que não
cessa mesmo em uma possibilidade de pós vida. Sim, pois as punições mais
severas vêm depois da morte. Nelas reside toda a nossa preocupação, mesmo que
elas não existam. O fato é que nos pesam mesmo em vida e, por vezes, nos fazem
acabar com ela, nossa vida.
Talvez essa vontade de barulho até seja uma forma de autopunição,
ou uma forma de não ceder à dor que as punições nos impõem todos os dias. Uma
forma de nos manter acordados, ou dormentes, por mais estranho que possa
parecer, em meio a essa vastidão imensa que a simples possibilidade de pensar
nos legou como sintoma da evolução. Sigamos macaqueando nossas formas de nos
relacionarmos enquanto eu, por aqui imagino a forma humana dos gatos,
solitários e talvez até individualistas, mas bem mais elegantes.